A influência dos turboélices na indústria aeronáutica soviética

Os motores turboélices foram desenvolvidos praticamente ao mesmo tempo que os motores turbojatos, e ainda hoje são muito utilizados em aeronaves comerciais regionais, aeronaves executivas e em alguns aviões de transporte militar.

No auge do seu desenvolvimento, na década de 1950, o que tornava esses motores mais atraentes era o fato de terem um menor consumo em relação aos motores turbojatos.  Em contrapartida, tinham como desvantagens a maior complexidade mecânica, maior peso e as limitações aerodinâmicas das hélices.

Na antiga União Soviética, no entanto, os motores turboélices tiveram um destaque que jamais chegaram a obter no Ocidente.

Em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, os soviéticos capturaram como prisioneiros de guerra vários engenheiros e cientistas alemães envolvidos em projetos de motores a reação. Os alemães estavam muito à frente dos aliados no desenvolvimento de aeronaves e motores a jato – e, de fato, foram os únicos combatentes da Segunda Guerra a utilizar tais equipamentos em missões reais durante o conflito.

motorImagem: Reprodução Airventure.de

No início da Guerra Fria, os soviéticos montaram dois Escritórios de Projetos  –  os chamados “OKB” – que foram liderados por dois projetistas alemães capturados, Scheibe (líder do OKB-1) e Prestel (líder do OKB-2). A finalidade era desenvolver motores turbojatos derivados dos motores alemães Jumo 004 e BMW 003, os mais avançados motores aeronáuticos do seu tempo.

Em 1947, os dois OKB já empregavam 2500 pessoas, incluindo 662 especialistas alemães. A política soviética, no entanto, ditava as regras. Tão logo em dezembro de 1947, foi apresentada aos OKB um grande desafio: desenvolver um motor turboélice de grande potência.

À época, os soviéticos estavam preocupados com os seus aviões estratégicos. O melhor de seus exemplares era, até então, o Tupolev Tu-4 – uma cópia do bombardeiro americano Boeing B-29, projetado a partir de um processo de engenharia reversa de uma aeronave americana, internada em Vladivostok durante a guerra (mas esse avião estava sendo rapidamente superado pelos aviões americanos Convair B-36, de alcance muito maior).

tupolev3Imagem: Reprodução Crash-Aerien

Os soviéticos também sabiam que os americanos desenvolviam bombardeiros a jato, os projetos North American XB-45, Convair XB-46 e Boeing XB-47. Todavia, muitas objeções pairavam sobre as aeronaves equipadas com turbojatos.

A principal era o alcance, fundamental para se obter poder sobre os “inimigos” americanos. Os turbojatos se caracterizavam pelo enorme consumo e pela baixa eficiência, e as técnicas de reabastecimento em voo ainda eram incipientes, na época.

O uso de motores turboélices oferecia uma alternativa interessante. Mais econômicos, poderiam dar maior alcance a um bombardeiro estratégico, pelo menos 10 por cento maior que um jato, o que podia significar um alcance de 2.000 Km a mais.

Os soviéticos acreditavam, também, que motores desse tipo poderiam impulsionar aeronaves velozes, que voassem racionalmente entre 600 a 900 Km/h, velocidade muito superior que a das aeronaves a pistão e praticamente equivalente à dos jatos então em desenvolvimento.

 heliceImagem: Reprodução Cultura Aeronáutica

Scheibe e Prestel desenvolveram, em 1947, alguns turboélices a partir dos turbojatos Jumo 004 e BMW 003, que ficaram conhecidos como Jumo 012 e BMW 018. O requisito oficial era de que os motores oferecessem potência entre 4.000 e 4.500 HP e que pudesse impulsionar um avião a 800 Km/h.

Depois disso, o progresso foi rápido. Outros modelos foram criados, como os -22, -28 e -0032S, com potência sempre crescente. Finalmente, em 1949, os dois OKB foram fundidos para desenvolver o modelo mais promissor, o -22, agora sob a direção de Nikolay Kuznetsov, já experiente na produção de turbojatos, derivados do motor Jumo 004. Os maiores problemas relativos aos motores turboélices foram sendo resolvidos, rapidamente.

O maior deles era dispor de uma hélice capaz de absorver grande potência, sem ter diâmetro muito grande e nem ter pás muito largas. O diâmetro limita a hélice em velocidade, pois as pontas das pás, ao girar em velocidade supersônica, perdem grande parte da sua eficiência.

Uma corda (largura) muito grande da pá gera muito arrasto e desperdiça potência excessiva. A solução foi encontrada na forma de duas massivas hélices contra-rotativas coaxiais, de quatro pás cada uma. Hélices contra-rotativas coaxiais eram comuns em uso náutico, especialmente em torpedos, mas não eram muito usuais na aviação. Foi uma boa solução, mesmo tendo desvantagens como a complexidade mecânica e o aumento de peso do conjunto motopropulsor.

tupolev1Imagem: Reprodução Airliners

Outro problema foi aproveitar o máximo possível da energia de expansão dos gases. Esse deveria ser o principal fator, pois aproveitar mais energia térmica significa maior economia, maior autonomia e maior alcance das aeronaves.

A solução foi usar vários estágios de turbina, progressivamente maiores, para aproveitar toda a pressão disponível dos gases queimados em expansão. O motor TV-2 (Turboélice-2), do OKB Kuznetsov, foi o primeiro a utilizar a hélice contra-rotativa. Mas os políticos vieram com um novo desafio: precisavam agora de um motor de nada menos que 12 mil HP, para um novo bombardeiro estratégico: o Tupolev Tu-95, então na fase de projeto.

Inicialmente, o OKB Kuznetsov propôs acoplar dois TV-2 numa caixa de redução e uma hélice em comum, mas o resultado foi pífio e pouco confiável. Uma pane na caixa de redução acabou provocando um acidente com um dos protótipos do Tu-95. Concluiu-se ser necessário projetar um novo motor.

 

 tupolev2Imagem: Reprodução Airliners

O OKB Kuznetsov projetou então um novo motor. O número de estágios de turbina foi aumentado para cinco. Para suportar maior temperatura de entrada na turbina, o que significa melhor aproveitamento de potência, as turbinas foram construídas com uma nova liga metálica, não ferrosa, constituída principalmente por níquel e cromo, com adições de outros metais como cobalto, titânio e alumínio.

Para minimizar as perdas de pressão, colares de vedação foram colocados nos estatores para minimizar a folga radial nas turbinas, e as palhetas eram ocas, para melhorar sua refrigeração. A caixa de redução coaxial para a hélice foi aperfeiçoada e simplificada, diminuindo a possibilidade de falhas.

O resultado desse trabalho foi designado como TV-12. Foi o último trabalho a contar com a colaboração dos especialistas alemães. Na bancada de testes, o motor apresentou um consumo específico muito melhor que o seu antecessor TV-2. Um avião Tu-4 foi modificado para servir de bancada de testes em voo do TV-12. O turboélice substituiu o motor radial 3, o interno do lado direito da aeronave.

Os voos foram executados em 1954. O novo motor foi incorporado ao segundo protótipo do Tupolev Tu-95 em fevereiro de 1955, substituindo os motores duplos acoplados TV-2 (chamados de 2TV-2F). O resultado foi excelente. O avião entrou em produção em janeiro de 1956, e o motor, então com 12 mil HP e redesignado como NK-12, finalmente entrou em produção seriada.

O NK-12 provou ser uma máquina realmente econômica, e extremamente confiável. Em termos de construção, o motor tem 14 estágios de compressores axiais, 12 câmaras de combustão canulares, e cinco estágios de turbina, em um único eixo que gira tanto os compressores quanto a hélice. O carretel turbina-compressores tem rotação máxima de 8.300 RPM, correspondente a 750 RPM da hélice, com redução de 11:1.

 antonovImagem: Reprodução Airliners

O consumo específico do motor NK-12, de 0,360 lb/hp-hora, é bem inferior ao consumo de motores turboélices da mesma geração, como os americanos Allison 501A, de 4.100 HP e consumo específico de 0,490 lb/hp-hora, ou mesmo de motores bem mais modernos. A grande potência fornecida pelos NK-12 deu um desempenho espetacular para o avião ao qual inicialmente foi destinado, o Tupolev Tu-95.

Com um peso vazio de 90 toneladas e MTOW (Maximum Take-off Weight – Peso Máximo de Decolagem) de 188 toneladas, essa poderosa aeronave alcança velocidade máxima de 920 Km/h, tem uma razão de subida inicial de 2.000 pés por minuto e tem teto de 45.000 pés.

Se comparado ao seu mais direto rival, o Boeing B-52H americano, o Tu-95 é 50 Knots mais lento, tem raio de ação equivalente e MTOW pouca coisa menor que o do B-52, que é de 220 toneladas. Devemos lembrar, no entanto, que o B-52H também é uma aeronave excepcional, e que possui nada menos que 8 motores turbofans de 17.000 lbf de empuxo cada um, contra os 4 turboélices do Tu-95.

Outras aeronaves utilizaram os motores Kuznetsov NK-12, como o grande transporte Antonov An-22 “Antei”, o maior avião turboélice já produzido, e o avião comercial Tupolev Tu-114, que durante a década de 1960 foi o maior avião comercial em operação no mundo (leia um post especial sobre ele aqui no blog!)

 tupolev1ccImagem: Reprodução Moddb.com

Os Kuznetsov NK-12 estão em serviço ativo até hoje, nas aeronaves Tu-95MS da Força Aérea Russa, o que comprova sua grande confiabilidade, durabilidade e economia. A operação de um motor turboélice em altas velocidades, equivalentes às dos jatos comerciais atuais, envolve problemas inusitados. Mesmo girando na baixa velocidade de 750 RPM, as pontas das pás das hélices começam a atingir a velocidade do som a Mach 0,70, a velocidade mais econômica do Tu-95.

Entretanto, como a maior parte da tração é fornecida pelas áreas das pás mais próximas ao cubo da hélice, essas permanecem eficientes até Mach 0,85. As hélices supersônicas, no entanto, ainda que sejam eficientes, geram um ruído enorme. Os Tu-95 são talvez os aviões mais barulhentos da história, e diz a lenda que podem ser ouvidos até de dentro de submarinos mergulhados.

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