Onde começa a ética? Onde começa a honra? Talvez tais limites não existam por serem subjetivos, mas há momentos que permitem mensurar de forma mais clara o que são estes conceitos.
Na verdade, a honra e a ética se confundem e se completam quando se trata do sentido de humanidade. Um dos exemplos mora na história real ocorrida na década de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, em um episódio vivido entre os pilotos Charlie L. Brown e Franz Stigler.
Em 20 de dezembro de 194, o B-17 batizado de “Ye Olde Pub” roncava forte, decolando do campo de aviação de Kimbolton, na Inglaterra, com a missão de bombardear uma fábrica de aviões em Bremen, na Alemanha. No comando da aeronave e de uma tripulação de nove homens estava o jovem tenente americano Charlie L. Brown.
Sobre Bremen, o céu se turvava pela fumaça negra das bombas antiaéreas, aeronaves em chamas e combates com os caças germânicos. Abaixo, ficava um rastro de mortes e destruição como uma cicatriz permanente na terra.
A missão do B-17 foi realizada com sucesso, mas a aeronave havia sido severamente danificada pelas baterias antiaéreas e apenas por um milagre continuava voando. O atirador de cauda morreu e seis tripulantes ficaram gravemente feridos. O nariz do avião sofreu danos e sua cobertura se encontrava totalmente estilhaçada.
A fuselagem estava seriamente avariada com buracos e fendas por toda parte. Por alguns instantes, o tenente Brown chegou a perder a consciência. Mas depois de recobrá-la, procurou estabilizar o avião e lutava como um bravo guerreiro para se manter voando.
O B-17 ganhou altura e começou a voar a esmo e sem destino certo, tão zonzo quanto o seu piloto. O comandante sabia que não demoraria muito a ser alcançado e abatido por algum caça alemão em seu caminho incerto pelo território alemão. Por isso, pensava apenas em conseguir manter o controle da aeronave, mesmo que com grande dificuldade.
Contudo, como já era de se imaginar, seu avião foi detectado ao sobrevoar um aeródromo inimigo. No campo logo abaixo, as sirenes de alarme soaram e um caça alemão decolou com ferocidade. A bordo dele estava Franz Stigler, um às veterano extremamente experiente e habilidoso, que nunca havia perdido uma batalha.
Ao interceptá-lo, entretanto, ficou surpreso: jamais havia visto no ar um avião tão danificado. A traseira destroçada, a parte superior da fuselagem atingida, o nariz do avião esmagado, buracos por toda parte.
Naquele momento iminente, todos no B-17 pensaram que havia chegado o momento da morte, mas o que se seguiu foi inesperado. O alemão saiu da posição de tiro e elegantemente posicionou seu avião ao lado dos inimigos.
Podia se ver no rosto de cada um dos homens a tristeza pelo fim próximo e a espera pelo tiro de misericórdia que os faria desabar em chamas. Stigler voou tão próximo que pode perceber seus olhares de resignação e tristeza. Não havia mais o que o B-17 pudesse fazer para fugir do seu destino.
Por um instante, no entanto, pensou nos filhos, nos pais e esposas daqueles homens. A destruição de nove lares estava em suas mãos como uma presa fácil e incapaz de reagir. Colocou-se no lugar de cada um e percebeu quanta seria a dor da separação de seus entes queridos.
“Quem disse que a guerra precisa ser tão desumana?”, pensou. Tomado pelo sentimento que só os seres humanos mais evoluídos possuem, a compaixão, acenou desesperadamente para Brown, tentando lhe mostrar o rumo de um campo na Suécia, um país neutro, onde o bombardeiro e sua tripulação poderiam pousar em segurança.
Tudo parecia confuso e o tenente americano não entendia o que o oponente alemão queria dizer. Mas o olhar de cada homem a bordo da B-17, que antes refletia o desespero, agora passava a refletir a esperança. Onde antes havia a certeza do fim, agora havia a confiança, pois se o alemão quisesse da fato abatê-los, já o teria feito.
Por ironia do destino, o inimigo agora era o amigo mais próximo.
Como último recurso, Franz Stigler indicou-lhe fazer 180 graus, guiou e escoltou o bombardeiro avariado até o Mar do Norte e para longe das linhas alemãs. Manteve-se como um anjo da guarda ao lado do B-17 de Brown durante toda a travessia do território alemão, para evitar que este fosse abatido por baterias antiaéreas.
Ao ver que todos estavam em segurança e longe dos palcos de guerra, o piloto alemão fez seu último gesto: “boa sorte, irmão! Que vocês cheguem bem em seus lares!”. Saudou Brown com a saudação de cavalheiro, enquanto lentamente iniciava uma curva de volta à sua base.
Foi um momento único na vida de dois aviadores que apenas por um acaso estavam em campos opostos. O americano não sabia como expressar sua gratidão ao seu oponente pela forma digna e honrada com que havia conduzido a situação, mas pediu a seus homens que fizessem um pacto de silêncio e nenhum deles jamais comentasse o que havia acontecido.
O Ye Olde Pub ainda percorreu cambaleando 250 milhas e chegou à sua base na Inglaterra, onde os sobreviventes foram socorridos. O tenente Charlie Brown contou a seus superiores o ocorrido, mas da mesma forma que ele havia proposto aos seus comandados, seus superiores decidiram ocultar aquele ato de humanidade para não prejudicar Franz Stigler, o que fatalmente o levaria a uma corte marcial e à pena de morte por traição.
Por seu lado, ao retornar à sua base, Stigler disse que havia abatido o B-17 e nunca mais tocou no assunto. A guerra teve um momento de glória.
Em 1987, mais de 40 anos haviam se passado desde aquele episódio. Porém, o gesto que mudou sua vida não saía da cabeça de Brown. O ex-tenente já estava velho e não queria morrer sem a chance de agradecer ao piloto alemão, se é que este ainda estaria vivo. Resolveu então pagar a publicação de um anúncio em uma revista de pilotos de combate, dizendo: “procuro o homem que salvou minha vida em 20 de dezembro de 1943″.
Passados alguns dias, para sua surpresa, recebeu um telefonema proveniente de Vancouver, Canadá. Do outro lado da linha, o homem falava em inglês, mas com um forte sotaque alemão. “Chegou bem em casa?”, disse. Era Franz Stigler, seu anjo da guarda nos palcos de guerra.
Foi como uma luz que se acendia. Brown foi tomado por uma emoção indescritível. “Sim, cheguei, e você?” Foi a única coisa que conseguiu falar naquele momento. “Em paz comigo mesmo‘”, respondeu o homem igualmente emocionado. Sem saber se ria ou se chorava, balbuciava repetidamente: “Obrigado… Obrigado… Por Deus… obrigado…”, enquanto as lágrimas caíam incontidas.
Daquele momento em diante, muitas cartas e telefonemas foram trocados pelos dois, firmando uma amizade que havia começado por um gesto de amor nos campos de batalha. Em 1990, conseguiram por fim se encontrar. Um longo abraço parecia unir de vez duas nações antes em conflito, dois irmãos que brigavam por causas distintas.
“Por que não derrubou meu avião?“, questionou Brown ao amigo. Stigler explicou que quando alcançou o bombardeiro e já tinha um ponto de mira certeira para disparar, mas o que viu era apenas um avião que a duras penas se mantinha no ar, sem defesas, e com a tripulação praticamente abatida.
“Não tive coragem para abater você e aqueles bravos homens. Voei a seu lado enquanto vocês tentavam desesperadamente voltar para casa e eu tinha que deixá-los fazer isso. Atirar em vocês teria sido o mesmo que atirar num homem em paraquedas. Não há honra em fazer uma guerra desigual e nem mérito em abater um inimigo sem condições de se defender. Não há glórias na covardia.”
Em 2008, com seis meses de diferença, se despediram da vida como se despediram da guerra. Como se tivesse sido marcado pelo destino, ambos faleceram de ataque cardíaco. Franz Stigler tinha 92 anos, enquanto Charlie Brown, 87 anos. Os dois irmãos se deram as mãos onde sempre estiveram: no céu.
Vale a pena lembrar que a ética e a honra não fazem apenas pilotos melhores. Fazem seres humanos melhores.
Imagem: Reprodução
Via Norte Verdadeiro