Os desafios oceânicos e o surgimento das primeiras companhias aéreas da história

No dia 11 de novembro de 1918 foi assinado o acordo que determinou o fim da Primeira Guerra Mundial. Milhares de aviões que sobrevoavam os céus europeus foram mantidos no solo, ocupando aeroportos e pistas improvisadas que, por sua vez, começavam a sofrer com os problemas de abandono. As construções, até então utilizadas para a administração, hangares e pistas de unidades aéreas, tiveram suas atividades redirecionadas.

Abruptamente, milhares de homens, soldados e aviadores foram desempregados e tentaram recomeçar suas vidas, trocando o uniforme por trajes civis. Somente uma minoria das dezenas de milhares de pilotos desligados do serviço foi aproveitada pelo Exército ou pela Marinha. Experientes aviadores, em busca de trabalho e da sobrevivência, foram empregados nas nascentes atividades aéreas de transporte postal, publicidade e fotografia e num incipiente transporte de passageiros.

Nos Estados Unidos, começaram a surgir os shows aéreos. Hollywood, por assim dizer, também entrou em cena e contratou pilotos – um dos contratados para frente das câmeras foi o famoso ás alemão Ernest Udet –, a fim de incrementar, com boa dose de realismo, a sua produção épica sobre aviação.

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A depressão decorrente à guerra e a desativação de parques industriais voltados para o conflito conduziram a aviação para um estado de letargia. Os grandes investimentos repentinamente foram interrompidos e as fábricas encerraram ou reduziram a sua produção a quase zero. Entretanto, o ideal, a importância e o fascínio que a aviação exercia sobre o público, permaneceram indeléveis. Pilotos, construtores e empresários, cada um a sua maneira, começaram a vislumbrar novos horizontes para a atividade. As sobras de guerra facilitaram as aquisições de aeronaves, e os avanços tecnológicos alcançados no período estimularam novas condições de emprego da aviação. Nessa nova fase, os desafios de transpor longas distâncias em seus territórios e permanecer mais tempo no ar, em voos de longa duração, já não satisfaziam pilotos e construtores. O Mediterrâneo já fora vencido. As linhas aéreas ensaiavam os primeiros passos.

A África e a Europa já eram servidas por alguns voos com passageiros. As metas, a partir daí, eram cruzar oceanos, vencer distâncias e barreiras naturais em voos intercontinentais. O objetivo óbvio era atravessar o Oceano Atlântico, ligando a Europa à América. Antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, Glen Curtiss planejou atravessar o Atlântico com um dos seus hidroaviões. Terminado o conflito, ele retomou o projeto em 1918 e, em maio de 1919, três quadrimotores Curtiss Fly Boatsda Marinha Americana – NC-1, NC-3 e NC-4 –, sob o comando de John H. Towers, decolaram de Rockaway, estado de Nova York, rumo a Trepassey Bay, Terra Nova. Depois, partindo de Trepassey Bay, eles voaram até as Ilhas do Açores e, das Ilhas, completam a travessia marítima até Lisboa. Após 19 dias – incluindo 42 horas de voo –somente um dos aparelhos, o NC- 4, pilotado pelo Tenente Albert C. Read, alcançou o destino. A travessia oceânica de 2.240 km até os Açores, num tempo de 15 horas e 18 minutos, foi um recorde para a época. Logo após pousar em Lisboa, depois de um longo, conturbado e histórico voo de 6.280 km, o Tenente Albert Read enviou uma mensagem para a sua base: “Estamos em segurança do outro lado da lagoa. O trabalho foi concluído.” Concluindo a jornada, Read enfrentou mais 1.350 km de voo até Plymouth, na Inglaterra.

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O hidroavião Curtiss NC-4

Ainda no mês de maio, os pilotos australianos Harry Hawker e seu navegador Kenneth Mackenzie-Grieve, tentaram fazer a primeira travessia non-stop – sem escalas – do Oceano Atlântico. Eles caíram no mar e, por muita sorte, saíram vivos da aventura, tendo sido resgatados por um vapor que passava próximo ao local da queda. O sucesso da travessia non-stop do Atlântico seria alcançado no mês seguinte. No dia 14 de junho de 1919, dois oficiais da aeronáutica inglesa, Capitão John Alcock e seu navegador tenente Arthur Whitten Brown, iniciariam o voo para a tentativa de travessia non-stop do Oceano Atlântico. Eles decolaram com um bombardeiro Vickers Vimmy, modificado, de uma pista de grama localizada em Saint John, Terra Nova, rumo à Europa, concorrendo a um prêmio de 10.000 libras oferecido pelo jornal inglês Daily Mails, a quem fizesse a primeira travessia non-stop do Atlântico. Voando num aparelho com cockpit aberto, equipado com rudimentares instrumentos de navegação, enfrentando ventos, tempestades e todo tipo de intempérie, eles venceram os poucos mais de 3.000 km do percurso, pousando desajeitadamente.

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Pouso nada convencional do VickersVimmy na Irlanda em 14 de junho de 1919

Os desafios se sucediam. Na Austrália, o governo oferecia 10.000 libras esterlinas para o primeiro australiano que voasse da Grã-Bretanha à Austrália, em menos de 30 dias. Depois de quatro tentativas de travessia feitas por aviadores que se acidentaram no vasto percurso – na aventura, quatro perderam a vida e três escaparam por pouco –, os vencedores foram os irmãos Ross e Keith Smith, acompanhados por mais dois tripulantes. A bordo de um Vickers Vimy, eles voaram 20.000 km em 27 dias e 20 horas.

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Tripulação do VickersVimy, se preparando para a travessia de 20.000 km

Na esteira das travessias, no dia 2 de julho 1919, o R-34, um dirigível militar inglês, construído a partir do modelo de um Zepelin alemão apreendido na Primeira Guerra Mundial, cruzou o Atlântico num voo de ida e volta entre a Escócia e Long Island. Conduzindo 31 passageiros a bordo, apesar de lento, o dirigível, para a satisfação dos defensores do “mais leve que o ar”, ressaltava as suas características de segurança e capacidade de carga para voos de longa distância, contrastando com os aviões da época. No dia 14 de fevereiro de 1920, dois militares da aviação italiana, Arturo Ferrarin e Guido Masiero, partiram de Roma rumo a Tóquio, percorrendo 18.000 km em 109 horas de voo.

Naqueles tempos, apesar das dificuldades resultantes da guerra, os desafios se sucediam, e os esforços para difundir o emprego do avião e garantir investimentos na aviação não arrefeciam. Nos Estados Unidos, William Mitchell, mais conhecido como Billy Mitchell – levando avante o seu esforço de convencimento das autoridades sobre a importância do avião integrado ao poder naval –, planejou um voo de volta ao mundo como forma de divulgar a aviação e obter apoio popular e fundos para o Serviço Aéreo do Exército dos Estados Unidos. Em busca dos seus objetivos, Mitchell se une à recentemente formada Douglas Aircraft, a fim de produzir versões modificadas de aviões anfíbios que estavam sendo fornecidos para a Marinha. Denominados Douglas World Cruisers (Douglas Cruzadores do Mundo), quatro destes aparelhos decolaram de Seattle, em abril de 1924, para a primeira volta ao mundo. Depois de cinco meses de uma árdua e longa viagem, com um total de 15 dias de voo, somente duas das aeronaves completaram o circuito.

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Um exemplar do Douglas Cruzadores do Mundo

Os voos de longa distância, em sua maioria, contavam com o suporte dos governos, particularmente dos europeus, que viam, na aviação, não só a expressão do poder e do prestígio nacional, mas também, uma forma eficaz de se comunicarem com as colônias em outros continentes. Voando para terras distantes, enfrentando condições climáticas adversas, cruzando obstáculos naturais e mapeando áreas desconhecidas, os pilotos não só proporcionavam condições para a consolidação e a eventual expansão do poder dos impérios europeus sobre os seus súditos, mas também, exploravam novos mercados para os transportes de correios e passageiros.

Assim, os franceses voavam através do Deserto do Saara rumo a Dakar, ponto de partida para as colônias francesas do Oeste da África, ou para a Ásia, rumo a Hanói, na Indochina. Os ingleses voavam para a Austrália, via Índia, e para o Cairo, rumo à África do Sul. Os holandeses seguiam para o Oriente Médio e Sudeste da Ásia, mantendo contato com as suas colônias na Indonésia, enquanto os alemães, através da recém- formada (1919) Deustche Luft Hansa – DLH – primeira empresa aérea civil europeia, iniciavam as atividades com a linha Berlim– Leipzig–Weimar. Valendo-se dos acordos feitos com a União Soviética, os germânicos ainda voavam para o Leste Europeu. Outras cinco companhias, entre postais e de passageiros, também são criadas na Alemanha, no mesmo período, voando de Berlim para Copenhagen, Dresden, Munique, Frankfurt e Viena.

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 1ª empresa aérea civil europeia, a Deustche Luft Hansa

Na França, também em 1919, foram criadas a Lignes Aériennes Farman, a Compagnie Générale Transaérienne, a Compagnie des Grands Express Aériens, além de outras companhias, voando para Paris, Bruxelas, Londres, Copenhagen e Casablanca. Na Grã-Bretanha, surge a A.V. RoeandCompany (AVRO), a Aircraft Transportand Travel e a Hangley Page Air Transport, que ligam Londres a Paris e Amsterdan. Na Holanda, é criada, em sete de outubro de 1919, a Koninklijke Luchtvaart Maatschappij – KLM, e, na Austrália, dois pilotos recém-chegados da guerra fundam a Qantas (Queens landand Northern Territory Aerial Services Ltd).Nos Estados Unidos, na mesma época, é criada a Hubbard Air Transport, a Aeromarine West Indians Airways, e o Post Office Department inaugura a linha Nova York–Chicago.

O cenário para a aviação, no período que se segue ao término da guerra, não era dos melhores. As dificuldades encontradas com a adaptação das aeronaves para o transporte de passageiros e a recente exposição do avião na guerra afastaram o público dos aeroportos, e a maioria das companhias recém-criadas faliram ou foram absorvidas pelas maiores. Sobreviveram a esta fase algumas empresas subvencionadas pelo Estado, como era o caso da Deustche Luft Hansa – que, mais tarde, se fundiria com outras empresas alemãs, para dar origem à Lufthansa (1926) – e o da inglesa Imperial Airways (1924).

Fonte: adaptado. ASAS, Tom D. Crouch, 2009.

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