“Atlântico”, o primeiro avião comercial brasileiro

Via Cultura Aeronáutica

Com rodovias precárias ou inexistentes e uma vasta extensão territorial, viajar através do Brasil no início do século 20 não era uma tarefa fácil. A melhor opção, até então, era o trem, movido por lentas locomotivas a vapor – mas cujas linhas férreas não atingiam todas as regiões.

Diante deste cenário, o país era o ambiente ideal para a implantação do transporte aéreo comercial. Já em 1890, o empresário Leopoldo Correa da Silva fundou a “Companhia Particular de Navegação Aérea”, em Cantagallo (RJ). Nas viagens, ele tinha a intenção de usar dirigíveis, que seriam desenvolvidos na Europa.

Correa da Silva chegou a criar duas aeronaves na Alemanha e teria feito experiências práticas entre os anos de 1890 e 1892. Nomeados “21 de Abril” e “Cruzeiro do Sul”, contudo, os balões, jamais foram colocados em serviço. Vários outros empreendedores também conceberam empresas aéreas de dirigíveis, mas as iniciativas nunca saíram do papel.

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Foi preciso a empresa alemã Condor Syndikat aterrisar na América do Sul para fazer acontecer o “milagre” da aviação por aqui, no início dos anos 1920.  Em princípio, o grupo, que não era uma companhia aérea, mas sim uma sociedade mercantil, veio oferecer material aeronáutico alemão a empresas nacionais de navegação aérea. Como ainda não havia mercado, a própria Condor acabaria por explorar voos em território brasileiro, sob concessão do governo.

A Condor trouxe duas aeronaves Dornier O Wal, de projeto alemão, mas construídas pela Costruzioni Meccaniche Aeronautiche S.A., na Itália (já que a Alemanha, à época, era proibida de fabricar aviões, pelos termos do Tratado de Versalhes). Os Dornier Wal eram hidroaviões bimotores, de construção semi-metálica, que podiam levar de oito até 12 passageiros em suas versões civis.

O grupo passou a atuar também na Colômbia, onde enfrentou uma séries de dificuldades com as linhas aéreas internacionais de seus aviões I-DOOR, c/n 34, batizado sob o título de “Atlântico”, e o I-DALG, c/n 35, nomeado “Pacífico”. Os erros enfraqueceram os investimentos e diminuíram o interesse de atuação no Brasil.

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Enquanto a Condor enfrentava problemas, o imigrante Otto Ernst Meyer desembarcava no porto de Recife, em 1921, para trabalhar na empresa têxtil Irmãos Lundgreen (Casas Pernambucanas). Ex-oficial do Serviço Aeronáutico Alemão, ele passou a tentar convencer os empresários pernambucanos a também montarem uma empresa de transporte aéreo.

Sem conseguir qualquer apoio, Meyer buscou a capital Rio de Janeiro, mas também não conseguiu a atenção do empresariado local. Sem desistir, em 1925 se mudou novamente, dessa vez para Porto Alegre, onde finalmente conquistou os empresários e políticos gaúchos.

Com o respaldo financeiro necessário, Otto Meyer embarcou para a Alemanha, em novembro de 1926, para adquirir componentes e aeronaves, além de buscar pessoal para operar os aviões. Visitando os escritórios da Condor Syndikat, em Hamburgo, acabou por fechar um acordo, pelo qual os alemães adquiriram 21% das ações da empresa aérea que estava montando.

Tal barganha se resumiu na entrega de uma aeronave Dornier Wal, o D-1012 (que, na verdade, era o mesmo avião “Atlântico”, ex I-DOOR, que tinha passado pela Colômbia algum tempo antes, e que tinha sido trazido para a Alemanha em outubro de 1926 e re-matriculado).

Enquanto Otto Meyer organizava sua empresa aérea, com o nome provisório de “Companhia Riograndense de Transportes Aéreos”, a Condor executaria os voos comerciais até que a nova empresa aérea brasileira, da qual era acionista, estivesse organizada e autorizada a operar.

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O “Atlântico” pousado em Itajaí, conduzindo o ministro Victor Konder, em 2 de janeiro de 1927

 

Para garantir a autorização, os alemães se empenharam em mostrar a segurança e o conforto do Dornier Wal ao governo da República. Convidaram o então Ministro de Obras e Viação, Victor Konder, e alguns jornalistas a voarem do Rio de Janeiro até Florianópolis, no dia 1º de janeiro de 1927, retornando à capital nacional quatro dias depois.

Os alemães realmente conseguiram impressionar o Ministro Konder. Tanto que o governo concedeu, tão logo em 26 de janeiro de 1926, a autorização para a operação de uma linha aérea dentro do território nacional pelo prazo de um ano, visto que a Condor Syndikat era uma empresa estrangeira e havia essa limitação legal.

Em 27 de janeiro de 1927, o Dornier retornou a Porto Alegre, onde ficaria baseado.  No dia 3 de fevereiro, às 8h30 da manhã, decolou das águas do Rio Guaíba, conduzindo Maria Echenique e João Fernandes Moreira, junto de Guilherme Gastal e João Oliveira Goulart – este dois, os primeiros passageiros pagantes da história da aviação comercial brasileira.

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Como carga, o “Atlântico” levou doze malas postais. Estava inaugurada a primeira rota comercial da aviação brasileira, depois chamada de “Linha da Lagoa” – pois o voo se fazia sobre a Lagoa dos Patos, e cujo destino era a cidade de Rio Grande, com escala na cidade de Pelotas.

Entre 3 de fevereiro e 15 de junho de 1927, todos os 63 voos da Linha da Lagoa foram feitos pela Condor Syndikat, com tripulantes e pessoal de apoio alemães, sob a chefia de Fritz Hammer. O piloto era Rudolf Cramer Von Clausbruch e o mecânico era Franz Nüelle.

O primeiro “aeroporto” consistia em uma rampa e algumas oficinas construídas pela VARIG como base de operações. Ficava na Ilha Grande dos Marinheiros, na foz do Rio Jacuí, na entrada da cidade de Porto Alegre.

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O “Atlântico” na base da VARIG na Ilha Grande dos Marinheiros, Porto Alegre

 

Nas viagens, os passageiros se alojavam no casco dianteiro, que era relativamente amplo e confortável, até mesmo para os padrões atuais. Os assentos eram de vime, para reduzir o peso. As janelas eram amplas, oferecendo boa visibilidade aos passageiros, e podiam ser abertas em voo. Durante os pousos e decolagens, as janelas deviam ser fechadas, para evitar entrada de água na cabine.

Antes da decolagem, o mecânico de voo distribuía o “serviço de bordo”, que consistia em chumaços de algodão e chicletes. Os chumaços de algodão deviam ser colocados nos ouvidos, para tentar conter o ruído dos motores Rolls-Royce Eagle, de 12 cilindros em V e 360 HP de potência cada, montados em tandem. Os chicletes serviam para evitar a sensação de “ouvido tapado”, caso o avião tivesse que subir um pouco mais alto.

O voo até a cidade de Pelotas se fazia em baixa altitude, entre 20 e 50 metros, sobre as águas da Lagoa dos Patos, na velocidade de cruzeiro de 160 Km/h. O avião tinha capacidade para levar até nove passageiros com as suas bagagens, além das malas postais. No “check-in”, o passageiro era pesado junto com a sua bagagem, e o que passasse de 75 Kg era cobrado como excesso.

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Os dois tripulantes, piloto e mecânico de voo (não existia a figura do copiloto), operavam a aeronave de um cockpit aberto, atrás da cabine de passageiros, abaixo da asa e logo atrás da hélice dianteira. Como estavam expostos às intempéries, usavam capacetes de couro, óculos de proteção e pesadas jaquetas de couro.

O percurso até Pelotas durava cerca de duas horas, e a conexão seguinte, até Rio Grande, durava 20 minutos. O avião pousava no trecho da lagoa conhecida como Saco da Mangueira, destino final do voo. Sem dúvida, era uma viagem rápida por qualquer padrão da época e não custava muito mais caro do que uma passagem de trem, muito mais demorada.

Os aviões, no entanto, demandavam muita manutenção. Frequentemente, motores e asas deviam ser removidos, e o casco virado de dorso, para que os mecânicos removessem as sujeiras do casco e consertassem eventuais pontos de vazamento de água para o interior da aeronave.

Nenhum acidente ou incidente grave ocorreu durante a operação do “Atlântico” na Linha da Lagoa, e a aeronave ganhou uma merecida boa reputação por ser muito confiável e segura. No final de 1927, a VARIG tinha transportado um total de 668 passageiros.

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O “Atlântico” atracado no cais

 

Em 1930, a Condor Syndikat deixou de existir, devido a uma fusão entre empresas que resultou na criação da Deutsche Luft Hansa, e se retirou da sociedade com a VARIG. A Luft Hansa, por sua vez, criou uma nova subsidiária brasileira, o Syndicato Condor, que retomou controle dos dois aviões que operaram a Linha da Lagoa, o Dornier Wal (“Atlântico”) e o segundo avião da VARIG, o Dornier Merkur (“Gaúcho”).

O “Atlântico” teve pouco tempo de operação no Syndicato Condor e foi retirado de serviço em 1932. O primeiro avião comercial brasileiro teve um fim inglório, apesar da sua grande importância histórica. A aeronave foi desmanchada e transformada em sucata no aterro da Ponta do Calabouço, no Rio de Janeiro, local onde anos mais tarde seria construído o Aeroporto Santos-Dumont.

De todas as peças do avião, sobrou apenas uma hélice de quatro pás, que posteriormente foi recuperada pela Varig e colocada em exposição no seu museu, em Porto Alegre. Com o fim da VARIG, o museu foi abandonado, e a situação dessa peça histórica hoje é muito incerta, pois não está definido quem é o dono de tal acervo.

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