O primeiro raide da Itália ao Brasil, sem escalas

Em 1928, a aviação vivia o final da era das “Grandes Travessias”. Foi neste ano que, a bordo de um Savoia-Marchetti S.64, os italianos Ferrarin e Del Prete fizeram história: quebram o recorde mundial de voo em distância, cruzando o Mediterrâneo e o Atlântico Sul até o litoral brasileiro – tornando-se heróis nacionais em terras tupiniquins.

O raide teve origem em 1927, a partir dos interesses do ministro da Aeronáutica da Itália, o aviador militar e político Ítalo Balbo, que tinha a necessidade de buscar novos recordes que provassem ao mundo inteiro a supremacia da indústria aeronáutica que estava sob suas ordens.

Frustrado com tentativas anteriores de raides que não destacavam em nada a soberania italiana, em uma ação combinada no Brasil à Câmara de Comércio Italiana de São Paulo, criou o Prêmio “De Pinedo” (em menção ao coronel Francesco de Pinedo, da Regia Aeronáutica, que havia cumprido o “Raide das Duas Américas”).

O desafio que daria 500 mil liras aos primeiros pilotos que alcançassem o Brasil até 31 de dezembro de 1928, no menor tempo de voo possível, vindos da Itália, em uma aeronave projetada, fabricada e motorizada naquele país.

Aliás, havia uma razão prática para a inclusão do Brasil na rota. O percurso entre a África Ocidental e o extremo Nordeste do país é a rota mais curta para a travessia do Atlântico (cerca de 2.800 km). O incentivo criava aí uma boa oportunidade para a criação de uma rota na qual o recorde de voo contínuo poderia ser quebrado.

ferrarin e del prete

À época, Arturo Ferrarin era um dos pilotos mais famosos da Itália. Nascido em 1895, foi instrutor de voo e piloto de caça na Primeira Guerra. Em 1920, ganhou fama pelo raide Roma-Tóquio, executado com dois biplanos Ansaldo SVA, as primeiras aeronaves a chegarem ao Japão partindo da Europa.

Ferrarin também participou de duas edições do Troféu Schneider, uma prestigiosa corrida aérea de hidroaviões. Em 1926, em Hampton Roads (EUA), com um Macchi M.39, e, em 1927, em Veneza, com um Macchi M.52, que sofreu problemas mecânicos. Nesta época, Ferrarin era piloto de testes da Fiat, ainda que formalmente fosse oficial da Regia Aeronáutica.

Carlo del Prete, nascido em 1897, era um oficial da marinha que se transferiu para a força aérea e se tornou piloto em 1922, ganhando fama como copiloto do coronel Pinedo no “Raide das Duas Américas”.

ferrarin e del prete 1Ferrarin, Mussolini e Del Prete

No final de 1927, a Savoia-Marchetti recebeu um contrato da força aérea italiana para o fornecimento de dois S.64, “um avião que voasse mais longe e por mais tempo que os existentes”, a um custo de 1,1 milhão de liras. Livre de qualquer exigência operacional padrão, fruto de um projetista brilhante e inovador, era um monoplano monomotor com asas cantiléver de alto aspecto, grandes, elegantes e afuniladas, que carregavam pouco mais do que o essencial.

A pequena fuselagem frontal de placas de compensado leve foi instalada quase dentro das asas, com os pilotos sentados lado a lado e com uma pequena cama, fixada no sentido longitudinal na parte traseira, para ser ocupada nos períodos de descanso.

Em termos estruturais, as asas possuíam três longarinas de madeira revestidas por compensado e dotadas de ailerons. Os cones de cauda duplos em V, de madeira leve e com amarrações de arame, sustentavam a deriva e os estabilizadores. Uma característica curiosa do S.64 era o ângulo de incidência das asas em relação ao solo, o que exigia uma longa pista para decolagem.

O motor, um Fiat A22T V-12, refrigerado a água, em configuração “pusher”, foi fixado acima e atrás da cabine, em uma carenagem de aço, a fim de proporcionar máxima eficiência à hélice de duas pás de madeira. Todas as superfícies móveis do estabilizador vertical e do leme eram ajustáveis em voo. O trem de pouso, com pneus Pirelli, tinha as rodas protegidas por carenagens.

s64-2Savoia-Marchetti S.64

A cabine dupla exígua contava com instrumentos avançados para a época, incluindo três bússolas, um radiotransmissor, embora sem recepção, e um horizonte artificial de fabricação alemã, o primeiro a ser instalado em uma aeronave italiana.

O primeiro dos dois aparelhos, designado MM.93, foi concluído no início de 1928, voando pela primeira vez em 3 de abril, no aeródromo de Cameri, com Arturo Ferrarin, Carlo del Prete e o mecânico Gino Cappannini. Durante os voos preparatórios, o S.64 decolou com diferentes pesos em busca da melhor configuração, o que determinou a instalação de uma hélice maior, com três metros de diâmetro.

Em 19 de abril, Ferrarin decolou de Montecelio, a 24 km de Roma, onde a pista foi construída em declive, a fim de que o S.64 pudesse ganhar mais velocidade na decolagem. O voo para o Brasil estava marcado inicialmente para fevereiro, quando as condições climáticas na Itália e no Brasil seriam mais adequadas. Porém, a conclusão da pista sofreu atrasos, o que também adiou o primeiro voo.

A travessia teria de ser realizada durante o outono do hemisfério Norte, já com temperaturas mais elevadas na Itália, e tempo instável no Brasil, no hemisfério Sul. Assim, os aventureiros se prepararam com aquecedores, macacões de voo para baixas temperaturas e um poderoso holofote para auxiliar na orientação noturna em baixa altitude, se fosse necessário.

Por fim, em 31 de maio de 1928, com tempo favorável, Ferrarin e Del Prete decolaram para o primeiro desafio. Com 3.486 litros de combustível a bordo, tinham o objetivo de bater o recorde mundial de distância em circuito fechado, entre Montecelio, Torre Flavia e Anzio. O trecho foi assinalado por holofotes para permitir o voo noturno. O pouso ocorreu em 2 de junho, com 7.666 km percorridos em 58 horas e 43 minutos.

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O S.64 decolando

O novo recorde superava a marca anterior dos americanos Stinson e Haldeman e, nos dias que se seguiram, os italianos preparam o voo para o Brasil, esperando alcançar o Rio de Janeiro, distante nove mil km. Antes da partida, inclusive, os aviadores ganharam uma bandeira nacional do embaixador brasileiro em Roma para ser levada a bordo.

Com a matrícula I-SAAV, o S.64 decolou na tarde de 3 de julho, com 3.632 litros de combustível, 168 kg a menos que o previsto, em função da alta temperatura em solo. O pouso estava previsto para algum local no litoral da Bahia, a 8.200 km de distância. Após uma corrida de decolagem de quase dois mil metros, o S.64 decolou, iniciando seu longo voo via Sardenha, Argélia, se mantendo sobre o mar até Gibraltar, a partir de onde seguiriam a costa da África.

Ferrarin e Del Prete permaneceram acima de nuvens baixas, avistando o solo sobre Villa Cisneros (hoje Dakhla, no Saara Ocidental), onde havia um aeroporto operado pela companhia francesa Latécoère. Sobre o oceano, foram atingidos por uma tempestade, o que forçou o motor acima dos limites.

O marcador de RPM quebrou, mas o motor se manteve firme e os pilotos precisaram estimar as rotações de ouvido durante o resto do voo. No dia seguinte atingem Rio de Oro, mudam a rota para cruzar sobre as ilhas de Cabo Verde, iniciando a travessia do Atlântico, o trecho mais perigoso.

Neste trecho, o consumo de combustível permitiu ao avião subir até 800 metros de altitude. Mensagens foram enviadas para os navios que cruzavam a área. Por fim, na tarde de 5 de julho, avistaram a costa do Brasil. Saudações enviadas por rádio são captadas em Pernambuco. Após sobrevoarem Natal, seguem rumo sul, porém o mau tempo os impede de alcançar a Bahia, só lhes restando dar meia-volta.

Com o combustível acabando e o céu fechado, a dupla decide pousar na areia a cerca de meio quilômetro da praia, 70 km ao norte de Natal, perto da então vila de pescadores de Touros, no Rio Grande do Norte, bem onde o litoral do Brasil faz uma curva de quase 90º, lembrando uma esquina no mapa.

s64-1Pouso na praia de Touros, no Rio Grande do Norte

Com um curto pouso sem danos mais sérios do que um trem de pouso quebrado e um rombo na fuselagem, o S.64 e seus tripulantes estabeleceram o novo recorde mundial de distância em voo contínuo, com 7.188 km percorridos em 49 horas e 15 minutos, conforme reconhecido pela Federação Aeronáutica Internacional (FAI) (já o Aeroclube do Brasil considera 7.163 km).

A marca superou o recorde de distância dos americanos Chamberlin e Levine, com o Bellanca “Miss Columbia”, no voo entre Nova York e Eisleben, Alemanha, em junho do ano anterior. E vale lembrar que antes de Ferrarin e Del Prete, poucos haviam cruzado o Atlântico Sul, sempre fazendo escalas (incluindo o brasileiro João Ribeiro de Barros e tripulação, no Savoia-Marchetti S.55 Jahúveja post especial no blog!).

Os italianos foram calorosamente recebidos em Touros. A primeira pessoa com quem conseguiram conversar foi o padre local, Manuel da Costa, que os hospedou na primeira noite. No dia seguinte, voaram para Natal em um Breguet da Latécoère, pilotado pelo francês André Depecker, que aguardava a chegada do S.64.

Nos dias que se seguiram, uma barcaça carregou o S.64 danificado para Natal, onde foi reparado por um mecânico italiano que havia chegado de São Paulo, auxiliado por colegas franceses e brasileiros.

A etapa seguinte seria um voo de propaganda para o Rio de Janeiro. Porém, em 30 de julho, o voo teve de ser cancelado abruptamente na corrida de decolagem, depois que panfletos jogados da cabine entupiram o radiador. Ferrarin decolou novamente com um mecânico francês a bordo para um voo de teste. Os italianos tiveram de ir à Bahia e, finalmente, em 2 de agosto, ao Rio de Janeiro, em aviões da Latécoère.

Na então capital do país, a sorte de todos mudaria. Em 7 de agosto, Ferrarin e Del Prete decolaram da base da marinha na Ilha do Governador em um hidroavião biplano monomotor S.62. Adquirida pelo piloto argentino Eduardo Olivero, a aeronave havia permanecido desmontada em caixotes por seis meses. Infelizmente, o hidroavião, talvez danificado durante o transporte ou estocagem, caiu logo após a decolagem.

Ferrarin e um mecânico brasileiro foram resgatados dos destroços sem grandes ferimentos, porém Del Prete sofreu uma grave fratura em uma perna. Levado a um hospital, esteve sob os cuidados dos melhores cirurgiões disponíveis e até o presidente do Brasil, Washington Luís, o visitou algumas vezes.

del preteCortejo do velório de Del Prete, no Rio de Janeiro

Del Prete morreu em 16 de agosto, sem jamais ter reclamado da sorte. Seus únicos assuntos eram religião e aviões. Após o velório no Rio, seu corpo foi enviado à Itália, desembarcando em Gênova em 30 de agosto. Ele foi enterrado em sua cidade natal, Lucca. O S.64 danificado no pouso em Touros também foi embarcado de volta à Itália, mas seu destino é desconhecido.

Arturo Ferrarin, por sua vez, foi recebido como herói em seu retorno a Roma, com o ministro Ítalo Balbo desfilando ao seu lado pelas ruas. Nos dias que se seguiram, o piloto recebeu de Benito Mussolini e do rei da Itália a Medalha de Ouro do Valor Aeronáutico. Del Prete foi condecorado postumamente.

Prestigiado, Ferrarin deixou a Regia Aeronáutica em 1930, seguindo na arriscada atividade de piloto de testes. Ferrarin continuaria voando até perder a vida, em 18 de julho de 1941, quando testava um protótipo do caça leve Ambrosini SAI. 107.

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Imagens: Reprodução
Via Tok de História

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