10 argumentos e questionamentos sobre o verdadeiro primeiro voo da história

A verdade incontestável é que o primeiro voo do homem com o aparelho mais pesado que o ar não está dissociado da contribuição de tantos pilotos, cientistas e inventores, os quais, durante décadas, edificaram o alicerce que permitiu, finalmente, ao homem voar. Entretanto, não podemos ignorar o salto inaugural, a primeira vez que o homem se alçou aos ares numa máquina, e o consequente despertar de uma controvérsia que atravessa o tempo e alcança os nossos dias. Quem teria, ao fim daquela soma de conquistas, alcançado o louro da vitória? Santos Dumont ou os Irmãos Wright? A fim de contribuir para o debate sobre tal polêmica, cabe colocar algumas questões:

1. Os irmãos Wright afirmaram ter voado antes de Santos Dumont, em 17 de dezembro de 1903. A prova apresentada – uma fotografia – por este inédito e tão aguardado acontecimento, só viria a público em 1908, ou seja, cinco anos depois do controvertido voo.

2. Outra questão a ser considerada, repetida pelos descrentes da façanha dos Wright, é a seguinte: seria razoável acreditar que eles aguardariam tanto tempo para divulgar tão retumbante notícia, mesmo sabendo que havia muitos inventores e pilotos tentando alcançar aquela glória?

3. A imprensa norte-americana, à época destacada por um milionário americano que morava em Paris, Gordon Bennett, dono de vários jornais na América e do único jornal de sua rede na capital francesa – o Herald –, poderoso e presente na divulgação de fatos importantes, especialmente daqueles que elevam o conceito dos seus patrícios aos píncaros do heroísmo, teria desconhecido um acontecimento desta magnitude?

4. A ampla divulgação na América do feito de Santos Dumont pelos jornais de Gordon em 1906 não deveria ter causado uma manifestação vigorosa dos Wright ou da imprensa americana, questionando o pioneirismo do brasileiro?

5. Por que somente depois de vinte anos das tentativas de voar dos Wright foi construído um monumento no local em que realizavam as experiências?

6. O Instituto Smithsonian de Washington não aceitara o avião original dos Wright pela falta de comprovação do voo realizado em Kitty Hawk. Isto só ocorreria em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial. Devido a esta falta de reconhecimento doméstico, Orville enviou o aparelho para o Museu de Ciências de South Kensington, Inglaterra, onde permaneceu vinte anos antes de retornar para os Estados Unidos.

7. Em 1905, os Wright se propuseram a construir uma máquina capaz de voar para o governo americano. O Ministério da Guerra, antes de aceitar tão tentadora proposta, solicitou uma demonstração, a fim de ver a aplicabilidade e capacidade da máquina, exigindo que voasse na horizontal e transportasse um homem. Em face desta condição, os irmãos Wright, ao contrário do que se poderia supor, se afastaram do negócio. Eles só aceitariam mostrar o aparelho depois de assinado o contrato.

8. Em 1906, a mesma proposta de venda havia sido feita ao governo francês, que também desejava saber da capacidade da máquina. Ante a negativa de demonstração, o governo desistiu do negócio. O mesmo ocorreu, em seguida, com empresários franceses, aos quais foi oferecido o projeto do aparelho. Em face do segredo absoluto e da impossibilidade de verem a utilidade do produto, os empresários também abdicaram da compra.

9. Somente em 1908, os Wright retornariam às tentativas de negociação com o governo americano, agora fazendo demonstrações de voo. Em Fort Myers, Virgínia, durante uma das demonstrações com o Flyer pilotado por Orville, um acidente fatal vitimou o Tenente Thomas E. Sefridege, piloto de balões do exército americano, que havia se voluntariado para voar como passageiro na exibição.

10. Em 1909, escrevia Anatole France: “Wright é detentor do recorde de distância, só e com passageiro. Mas ele ainda não ergueu voo pelos próprios meios do aparelho.”

Os argumentos e questionamentos acima apresentados, obviamente, não colocam um ponto final na discussão, nem diminuem o extraordinário feito dos irmãos Wilbur e Orville Wright no campo aeronáutico. Ao contrário: ao lado dos demais pioneiros, eles contribuíram com a sua coragem, persistência e criatividade para dar asas à humanidade. Assim como o tardio nativismo americano defende o pioneirismo dos irmãos Wright, existem franceses que defendem ter sido Clément Ader, em 1890, o primeiro a voar como o seu Avion.

Logo após o sucesso e a divulgação do voo pioneiro de Santos Dumont, Ader – que havia realizado experiências aeronáuticas com apoio do governo – veio a público reiterar ter sido ele o primeiro a voar com um aparelho mais pesado que o ar. A iniciativa de Ader, estimulada por considerável parcela da sociedade francesa, que culpava o governo pelo abandono do seu conterrâneo às vésperas do êxito de suas experiências, provocou constrangimento entre as autoridades, que se viram na obrigação de se pronunciar. Em resposta, o governo divulgou um relatório reservado da comissão militar que havia acompanhado as experiências com o Avion. A conclusão foi que o aparelho deu uma corrida na pista e “foi vítima de um golpe de vento”.

Como se vê, a disputa pela primazia do primeiro voo do homem com uma aeronave mais pesada que o ar ainda cruza fronteiras, atravessa os tempos e segue servindo de combustível para acaloradas e intermináveis discussões. O trecho a seguir, escrito por Santos Dumont, pode contribuir para iluminar um pouco mais esta controvérsia histórica.

Os irmãos Wright são motivo de orgulho para os americanos. Não resta dúvida que seus feitos foram memoráveis, mas não devemos, nem podemos desprezar a realidade, quando se trata de estabelecer, no terreno histórico, a verdade cronológica. […] Só em 1908 é que os irmãos Wright vieram à França mostrar o seu aparelho. Haviam-no guardado em segredo, diziam eles, durante cinco anos, desde o seu primeiro voo de 17 de dezembro de 1903. Com efeito, nenhum jornalista da tão perspicaz imprensa dos Estados Unidos se abalançou a ir assistir aos voos, controlá-los, aproveitando o assunto para a mais bela reportagem da época.

Ora, em 1904, na Exposição de Saint Louis, isto é, na época em que os Wright diziam que a sua máquina voava havia um ano (e Saint Louis ficava a poucas centenas de milhas de Dayton), havia a ganhar um prêmio de 500 mil francos, do mesmo valor da oferta de 1908. E, nessa ocasião; nenhum direito de patente a ceder! Mas esses 500 mil francos não interessaram aos dois irmãos. Preferiram esperar quatro anos e meio e viajar 10.000 quilômetros, para ir disputar a oferta francesa, no momento em que eu próprio, os Farman, os Blériot e outros voávamos já… Logo depois dos irmãos Wright, aparece Levavasseur com o aeroplano ‘Antoinette’, superior a tudo quanto, então, existia; Levavasseur trabalhava, havia já vinte anos, em resolver o problema do voo; poderia, pois, dizer que o seu aparelho era cópia de outro construído muitos anos antes.

Mas não o fez. O que diriam Édison, Graham Bell ou Marconi, se, depois que apresentaram em público a lâmpada elétrica, o telefone e o telégrafo sem fios, outro inventor se apresentasse com uma lâmpada elétrica melhor, telefone ou aparelho de telegrafia sem fios, dizendo que os tinha construído antes deles? A quem a humanidade deve a navegação aérea pelo mais pesado que o ar? Às experiências dos irmãos Wright, feitas às escondidas (eles são os próprios a dizer que fizeram todo o possível para que não transpirasse nada dos resultados das suas experiências), e que estavam tão ignoradas no mundo, que vemos todos qualificarem os meus 220 metros de ‘minuto memorável na história da aviação’; ou é aos Farman, Blériot e a mim que fizemos todas as nossas demonstrações diante de comissões científicas e em plena luz do sol?” 

p1-4
Figura 4 – Alberto Santos Dumont

É importante ressaltar que o depoimento do inventor brasileiro não exprime ressentimento nem reduz os feitos de seus contemporâneos no pioneirismo aeronáutico, traços de personalidade que se coadunam com a sua figura de homem livre de ambições e dotado de reconhecido desprendimento material. Os seus inventos não eram patenteados e qualquer um podia reproduzir o seu trabalho. Isto contribuiu consideravelmente para imprimir velocidade à evolução aeronáutica, pois parte ou totalidade do que fazia, se somava ao conjunto das experiências que eram levadas a efeito pelos demais inventores. No que diz respeito ao pioneirismo do voo de um aparelho mais pesado que os ar por meios próprios, conforme fartamente registrado na história, parece não haver espaços para incertezas. No dia 23 de outubro de 1906, Santos Dumont decolou com o 14 BIS, sem qualquer assistência de equipamento externo, voou e pousou com o testemunho de uma multidão, perante uma comissão técnica especializada e a imprensa, esta que levou para o mundo a sua extraordinária proeza.

 Fonte: adaptado. GRANT, 2010. VILLARES, Henrique Dumont. “Santos Dumont – O pai da aviação”.

 Conheça também a história de Jaques Charles e os irmãos MontGolfier:  Os percursores do voo mais leve que o ar

Deixe aqui sua opinião